MEMORIAL DULCINA CRUZ LIMA - PÁGINA - 001

MEMORIAL DULCINA CRUZ LIMA

RODELAS - BAHIA


A cidade de Rodelas, Bahia, nascida à beira rio São Francisco, hoje beira lago da Barragem Gonzagão, Itaparica, rende a homenagem do reconhecimento e do amor, à professora Dulcina Cruz Lima, pioneira da educação e cultura naquele chão. Patrocínio do escritor João Justiniano da Fonseca e Dr. João Soares de Almeida, seus ex-alunos.

A Nação Tuxá foi descoberta entre 1669 a 1671 e se vão mais de 330, implantada a aldeia pelo capuchinho francês Francisco de Domfront. Logo mais se acostava a esta o colonizador para formar o povoado.

Segundo o registro da crônica antiga o nome originário daquele povo era Nação Corumbabá, raiz da nossa querida Nação Tuxá. Foi um povo bravo que lutou contra a invasão holandesa nas Alagoas. O chefe da nação, porque usava (é registro historio) uma rodela pendente do pescoço, foi chamado de indo da rodela. O nome acabou alcançando a nação, mais adiante o povoado que se formava ao lado da aldeia e passo-se à cidade. Honra e glória a Dulcina Cruz Lima.
Coordenação
João Justiniano da Fonseca


Memorial
Dulcina Lima

A mestra e amiga de sua terra.


Coordenação
João Justiniano da Fonseca

Participação

João Justiniano da Fonseca,
Incluindo transcrição de Manuel Moura.
Salvador Justiniano da Fonseca,
João Soares de Almeida,
Joana Lima Rezende,
Carmelita Cruz,
Maria de Lourdes Almeida Rodrigues.
Cibele Lima,
Euclides Soares Novaes.

Foto da capa, Praça Dr. José Lima na cidade antiga.



João Justiniano da Fonseca
Rua Mato Grosso, 478/602.
Cond. Mansão Real da Pituba
41830-150 Salvador
Tel. (71) 32400100 – cel. 88881004





APRESENTAÇÃO


Apresento com muita honra e muito orgulho, com desvanecido amor, o MEMORIAL DULCINA LIMA, que patrocino ao lado de João Soares de Almeida, na qualidade de ex-alunos e amigos. Poderia ser erguido em praça pública, em lugar mais vistoso. Houve quem o sugerisse. Quis implantá-lo na escola que recebe o seu nome, pela simples razão de valorizar o estabelecimento. Lá já se encontra a minha biblioteca.
Dulcina Lima é uma das glórias maiores de Rodelas. Há outras, de grandeza equivalente. Nenhuma, entretanto que renunciasse a tudo seu para servir à terra natal. E com que amor, com que dedicação o fazia, com que abnegação, quase santamente. Nascida no interior do município, mal conhecia a então vila de Rodelas. Fora criada e tivera a adolescência em Belém do São Francisco, Pernambuco, onde seu pai montou residência fixa. Na época fugia-se ao banditismo no sertão da Bahia, representado pelo facínora Lampião, que, fugido de Pernambuco entre nós se homiziava, até escapar para Alagoas.
Concluído o curso de professora na Academia Santa Gertrudes, em Olinda, não teve vacilação, não teve dúvida – escolheu como pátria de seu amor, de sua missão sacerdotal na educação e cultura, a vila de Rodelas, chão dos seus maiores. Aqui falarão alguns de seus ex-alunos, a família, na pessoa de Cibele Lima e o professor Euclides Soares Novais, diretor do colégio. Dirão, cada qual a seu modo, um pouco da grande mestra e da extraordinária pessoa humana que se somavam em Dulcina. Destaco a lembrança de como discorria sobre o passado e o antepassado. A mim pessoalmente, já adulto e interessado em assuntos de família, dizia de Antonio A. Fonseca, pai de Domingos da Fonseca Azevedo e deste mesmo Domingos, que habitou o catingão do Rapador nos nossos primeiros tempos. (1) Foi seu terceiro avô. E meu também. Dulcina sabia amar e glorificar seu chão e suas raízes. E infundiu em mim esse amor. De certo, igualmente nos mais alunos. Um dia, em uma de nossas longas tertúlias, com as quais me amenizava a solidão intelectual quando prefeito de Rodelas passou-me um material de pesquisa e pediu: João escreva a história de sua terra. Quis ela mesma realizar esse projeto. O material colhido era escasso. Faltava-lhe oportunidade de sair para uma maior pesquisa fora do pequeno espaço Rodelas – Belém do São Francisco. Guardei o manuscrito, que vai adiante transcrito e o material pesquisado. Com muitos projetos em mente, romances imaginados, poesia buscando seu momento, não pude dedicar-me, de pronto, à pesquisa, tarefa que requer tempo e atenção, dedicação inteira. Ela já não vivia quando fechei o livro RODELAS, CURRALEIROS, ÍNDIOS E MISSIONÁRIOS.
Agora é a vez de manifestar a gratidão e render a homenagem merecida, de mim pessoalmente, de Rodelas e da região em torno. Este livreto especialmente para apresentar o Memorial Dulcina Lima, e um pouco falar de si.
Falo no entorno de Rodelas e me ocorrem uma advertência e um apelo às autoridades estaduais. É tempo de pensar-se em algum curso de ensino superior na região. A esse nível, vivemos hoje como vivíamos há setenta, oitenta anos, em função de Pernambuco. Antes de Dulcina era assim. Agora ainda é assim. Nada contra Pernambuco, estado a que amo e respeito como vizinho e consangüíneo; aí vivem muitos da mesma raiz que é a minha. A Bahia fica no desamor, na decepção de seus filhos. A região pede urgente, uma unidade de ensino da UNEB. Rodelas, Chorrochó, Abaré e Macururé, isolados lá em cima, oferecem material humano para isso. E uma particularidade: Rodelas foi violentada pelo desenvolvimento do Nordeste. Perdeu todo o espaço de trabalho agrícola com a inundação de suas terras. Ao lado da cidade, há uma aldeia indígena que ficou sem seu chão de lavoura, jamais substituído. Por que não compensar esse imenso prejuízo com o benefício do ensino superior, que nos ensejaria a oportunidade de um espaço de trabalho digno de quem ofereceu tanto? Não falemos aqui em Paulo Afonso. É outra área, que vai alcançar Geremoabo, Santa Brígida, Pedro Alexandre abaixo. Daí não se beneficiariam Abaré, Chorrochó e Macururé, muito distantes e servidos de precárias estradas de barro.
Fique a Rodelas, gente residente e gente cujo amor vem ver nosso São João Batista anualmente; fique aos visitantes, aos turistas, a referência e o convite – visitem sempre que pisarem o chão rodelense, este memorial, construído com as cordas de meu coração. Encontrem aqui nosso passado educacional. Foi o pouco que pude em honra de quem me ensejou as luzes e o estímulo para alcançar o que sou.

Nota:
(1) Em outras fontes orais, colhi, depois, a informação de que, antes de Domingos da Fonseca ocupara a fazenda Rapador, seu tio e talvez sogro José da Fonseca, irmão de Antônio A. Fonseca.


SONETO DO RENASCER
            9-06-07, 2 da manhã

Pudesse recompor o meu passado
fazendo-o reverter no hoje e agora...
Traria minha mãe – Nossa Senhora,
Santa Ana ou Mãe Rosa, tendo ao lado.

Seo Né, Aldi, Domingos e Toínho,
e eu, donzelo - adolescente ainda,
hora no trono, hora na berlinda,
não sabia de uísque nem de vinho...

E eis, o sobrado e a escola de Dulcina,
a Rodelas humilde e pequenina,
de antes da barragem Gonzagão...

Inteiro meu passado, hoje e agora,
renasce diariamente a cada aurora,
preso, arraigado em mim, no coração...

Sumário

1 – Dulcina Cruz Lima – Missionária da Educação e cultura.................... 15
João Justiniano da Fonseca
Do livro RODELAS – Curraleiros,Índioss e Missionários. Pág 234/245
Póstuma
2 – Apêndice do livro Rodelas, Curraleiros, Índios e Missionários 28
3 – Universidade Felipe dos Santos..................................................35
       João Justiniano da Fonseca
        Do e-book No Correr do Tempo – Memórias
4 – Dulcina Cruz Lima......................................................................44
      Salvador Justiniano da Fonseca
5 – Professora Dulcina Cruz Lima....................................................46
       João Soares de Almeida
6 – Dulcina Crus Lima em Nossas Vidas..........................................49
     Joana Lima Rezende
7 – Minha Professora Dulcina...........................................................52
     Carmelita Cruz
8 – Falar de Dulcina..........................................................................53
      Maria de Lourdes Almeida Rodrigues
9 – Tia Dulcina..................................................................................55
       Cibele Lima
10 – Breve Histórico do Colégio Dulcina Cruz Lima.......................58
        Euclides Soares Novaes


Professora Dulcina Cruz Lima
Em quatro fases da vida.



João Justiniano da Fonseca - Do livro RODELAS – Curraleiros, Índios e Missionários (pág.234/245):

XXVI - DULCINA CRUZ LIMA
Missionária da Educação e cultura
Segundo dados oficiais, colhidos no IBGE/BA, para uma população urbana de 3.053 habitantes e total de 4.298, Rodelas conta com 23 estabelecimentos de ensino de primeiro grau e dois de segundo grau, que oferecem as opções de magistério e contabilidade. Esta situação de privilégio se iniciou em 1933 com Dulcina Cruz Lima. Mas, há o contraste. Em janeiro de 1971, quando já existiam os dois estabelecimentos de ensino de segundo grau, a cidade contava com uma biblioteca pública construída em moldes modernos, contando 1.200 volumes catalogados, na sua grande maioria obras voltados para a área infanto-juvenil, mantendo-se  convênio com o Instituto Nacional do Livro para contínua renovação e ampliação do acervo. Nos dois anos seguintes, cresceu o número de livros. Em 1973 elegeu-se um prefeito que iniciou a gestão desviando quase todos os livros. Não é que isto se acabou! A biblioteca era municipal e a política a engoliu
Dulcina é a própria história da comunidade no que tem de mais importante, a educação e cultura. Dela, dos seus ensinamentos e dedicação, do seu estímulo e apoio, viemos todos nós da era atual que galgamos uma posição de destaque na vida, tanto os que fomos seus alunos quanto os que foram alunos de uma de suas ex-alunas, os novos repetindo os antigos. Dela, do seu estímulo, do seu poder de convencimento, de sua palavra afetuosa, veio-nos a vontade de estudar e progredir, e mais que isso, de conduzirmos nossos filhos a um destino melhor, pondo-os no caminho do saber. Dela, do patriotismo que criou em nós na primeira fase da vida, talvez decorresse a disposição que tivemos para defender a nossa emancipação político-administrativa e pensarmos no melhor caminho para a comunidade - a educação. Há exceções, é claro, mas, as professoras suas ex-alunas seguiram-lhe os passos com a mesma dedicação para com a escola e os escolares, e em Rodelas, ainda hoje se faz com o mesmo entusiasmo, a mesma festa cívica do Sete de Setembro que implantou entre nós. Aqui, muitos dos que vêm de sua escola e da escola de professoras suas alunas, embora todas as mudanças de vida, todos os novos conceitos e convicções, todas as divergências pessoais e até os desvios morais que já apontam no segmento da era moderna, têm uns sinais de sua caligrafia, e, sem se aperceberem disso, algum traço de sua grandeza. Sua letra ficou tal qual um carimbo impresso; algumas de suas ex-alunas poderiam firmar sua assinatura sem dificuldade. Mais que isso, o seu método de ensinar e educar, de oferecer cultura e patriotismo, irradiou-se, por via de suas alunas, para a região e para lugares mais distantes. Ex-alunas suas ensinam em Salvador, com bom desempenho e conceito. Antes dela só houve um destaque em Rodelas - o Dr. José Lima. Hoje, muitos de Rodelas se apresentam em áreas diversificadas da profissão liberal ou técnico-universitária e desses, os que não foram seus alunos, receberam sua influência através de professoras que se iniciaram com ela.
Dulcina obrou o milagre de construir uma sociedade, partindo da organização de um pequeno povo de hábitos de caboclo, de uma gente sem noção de coisa mais importante do que criar bode e plantar batata e jerimum na vazante do rio, de crianças que brincavam na lama do alagadiço.
Este é um capítulo especial, de muitas vozes. Como primeira, a de Manuel Moura, hoje guardado, como Dulcina, na eternidade. Trata-se de um trabalho inédito que deixou sobre a mestra. Elaborado em forma de relatório, é, no texto, uma peça literária e apresenta, nos anexos, momentos da Escola Felipe dos Santos, de Rodelas e mesmo da vida, talvez dos sonhos da professora. O autor o elaborou na qualidade de prefeito, não tenho informação do destino que pretendia dar-lhe, talvez o produzisse quando inaugurou uma escola com o seu nome, para iniciar a memória da Casa. Talvez pensasse, simultaneamente, em guarda-lhe a memória. Nele diz sucintamente das atividades e da pessoa. Os termos de visitas oficiais de inspetores escolares anexados ao trabalho, transpiram entusiasmo pelo ensino local e admiração pela mestra:

"RELATÓRIO sucinto das atividades escolares da professora Dulcina Cruz Lima.
Relatar as atividades escolares da professora Dulcina Cruz Lima, em Rodelas, constitui motivo de satisfação para mim, na qualidade de seu ex-aluno, integrante que fui da sua primeira turma matriculada nos idos de 1933.
Fazê-lo sucintamente, no entanto, não diz verdadeiramente de sua brilhante atuação no desenvolver do povoado, que ela acompanhou, preparando a sua juventude, vivendo os seus principais dramas sócio-econômicos e as suas festividades, até a sua elevação, nos dias presentes, à categoria de Cidade.
Em 1932, (1) há 33 anos, chegou Dulcina Cruz Lima, ao então povoado soturno, de condições de vida precárias, sem meios regulares de comunicação. Era a primeira e única professora de Escola Estadual. Vale lembrar o seu heroísmo, aceitando resolutamente, a cadeira de Rodelas, inspirada naturalmente, no patriotismo que lhe não faltaria para servir à sua gente e sua terra natal, que não conhecia.
Descende Dulcina de uma das famílias mais abastadas da região e fora educada no Recife, onde se diplomou. Não visava, pois, unicamente à remuneração do cargo público e sim, também a oportunidade para demonstrar a sua vocação apostólica e para proporcionar a instrução e a educação do povo simples, da perdida, da tão rejeitada quanto esquecida povoação encravada no ponto mais norte da Bahia,(4) no inóspito sertão, na era infestado pelo banditismo que teve a sua expressão mais forte no temível Lampião.
Moça, inteligente, culta, constituía motivo de admiração e respeito. Granjeou as simpatias gerais e a sua figura era um verdadeiro constante na paisagem grotesca e simples da modesta terra.
Recrutada a primeira turma, foram feitas as primeiras matrículas. Em seguida, a seleção e a constituição de um grupo de meninos que passaria a ser a primeira série primária. Foi o início de uma grande luta, em que o trabalho incessante não a prendia unicamente à escola. A professora Dulcina sempre esteve presente na orientação das coisas da igrejinha, na realização de festas cívicas, de horas recreativas, na exercitação de esportes, na preparação de paradas da mocidade e na levação de peças teatrais, que se tornaram famosas, atraindo, inclusive, pessoas das localidades vizinhas.
Jamais uma data histórica passou sem uma palestra, sem recitais, ou sem a competente comemoração. O ponto culminante das festas cívicas sempre foi o Sete de Setembro - alvorada, hasteamento da bandeira nacional, palestras, recitais pelos alunos, jogos esportivos e paradas pelas ruas principais, sob o entusiasmo dos hinos e o ruflar de tambores improvisados. Sete de Setembro em Rodelas, não é apenas festividade nas escolas. É festa de todos, porque o povo civicamente em festa, acompanha o desenrolar de tudo, alegre e vibrante.
Assim, poder-se-ia enfileirar nas seguintes atividades, a presença de Dulcina em Rodelas: 1 - Trabalho, dinamismo e amor pelo ensino; 2 - 10 anos (os primeiros) sem qualquer orientação direta do órgão competente; 3 - conclusão de várias turmas do 4º ano, com programa do 5º; 4 - celebração de festas lítero-recreativa; 5 - pronunciamento de dezenas de palestras sobre os diversos assuntos do interesse escolar e da comunidade, de que não ficou registro; 6 - influência positiva na formação da juventude, hoje presente e responsável pelos destinos da terra; 7 - mestra de muitas professoras que já foram mestras de outras professoras; 8 - criadora da Caixa Escolar e de Museu e fundadora da Biblioteca Escolar; 9 - executou, sem enfado, os programas escolares e cumpriu devotamente o dever; 10 - primeira professora da terra, quando reinava o banditismo nestes longínquos sertões baianos; 11 - primeira Delegada Escolar, exercendo com eficiência e dinamismo o seu novo mister.
Dulcina fez com que a comunidade vivesse a escola, sem que esta se ausentasse da comunidade. Irmanadas, escola e comunidade, construíram a formação cívico-religiosa de Rodelas, cujos frutos aí estão patentes, com a sua independência político-administrativa e com a existência de um ginásio, no seu segundo ano de vida, cujo corpo docente é constituído de inteligentes e dinâmicas filhas de Rodelas, que seguem com altruísmo, o exemplo edificante da antiga mestra, cujo denodo não se esmaeceu com o tempo.
É pena que o pioneirismo de Dulcina em Rodelas, tenha se perdido sem registro, salvo o da memória, sempre presente e viva na lembrança de cada um de nós, sobretudo e de modo especial, de nós, os seus ex-alunos, muitos deles gozando de boas posições nas carreiras públicas.
Dulcina, assim, foi a centelha e acendeu a chama que hoje se orgulha da sua formação sadia e do prestígio de que desfruta entre tantos que lhe dão a honra de uma visita.
Em 1963 - já delegada escolar, por ocasião da festa de instalação do Município, com a posse dos vereadores e do prefeito, a professora Dulcina promoveu em dramatização teatral, o histórico de Rodelas, com personagens típicas, em amplo palco em que a praça pública foi o grande anfiteatro que abrigou o povo, que, em delirantes palmas, as mais calorosas, ovacionou as diversas passagens da história ali representada.
Rodelas rende as suas homenagens e o seu agradecimento à Professora Dulcina Cruz Lima. Rodelas, 28 de agosto de 1965. Manuel Moura - Prefeito”. (2)

Como se vê do relatório acima, em 1963, quando lhe sobrava tempo para o gozo da merecida aposentadoria, Dulcina deixava a regência da primeira escola de Rodelas, para aceitar o cargo de Delegada Escolar. Para ela não fazia sentido o gozo da aposentadoria, que entendia como ociosidade. Agradava-lhe o trabalho, a prestação do serviço, a presença junto às crianças e aos jovens. Talvez precisasse também da vantagem remunerativa, mas isso não era, definitivamente, o importante, tanto assim, que alcançada a estabilidade econômica, nesta incluído o valor da gratificação de delegada escolar, continuou trabalhando. Dulcina, era, definitivamente, amor e dedicação à comunidade. Não se casou, não teve filhos. Seus filhos eram os seus alunos e mesmo os ex-alunos. Era uma alegria, para ela, recebê-los e abraça-los, levar horas de boa palestra, utilizadas quase sempre para proselitar pela grandeza local, orientar, sugerir - ainda fazer cátedra.
Seu trabalho de professora e mestra não somente foi admirado e respeitado pelos Inspetores Escolares Bertino Valverde e Clóvis Mota, que visitaram a escola. Foi, acima disso, louvado e dado como exemplo a seguir pela comunidade de professores baianos. Vejamos as expressões desses relatório:
"Tive ensejo de visitar, nesta data, a Escola Estadual mista da Vila de Rodelas, eficientemente regida pela professora Dulcina Cruz Lima, que encontrei em pleno exercício das suas nobilitantes funções, presentes 40 alunos dos 47 matriculados. Assisti os trabalhos escolares do dia, tendo argüido os alunos das diversas classes sobre Língua Vernácula, Aritmética, Geografia e História do Brasil notando surpreendente aproveitamento, a par de excelente disciplina - fruto da orientação sadia que vem imprimindo ao ensino a dedicada Mestra. A Professora Dulcina Cruz Lima, pela sua assiduidade, amor ao trabalho e excelente conduta, constitui um exemplo no seio do professorado. É, pois, da mais irrestrita justiça consignar neste termo a ótima impressão que levo dessa tenda de trabalho produtivo, sentindo-me pago da fadiga de tão longa viagem, ao visitar essa Escola dos rincões nordestinos. Deixo neste termo exarados os meus francos louvores pela atuação da distinta Educadora, que com verdadeiro espírito de Mestra, vem emprestando o seu entusiasmo moço à causa suprema da educação da nossa gente. Rodelas, 24 de setembro de 1942. Renato Bertino Valverde".
"Tenho, hoje, a feliz oportunidade de lavrar, satisfeitíssimo, o devido lançamento de registro das visitas que fiz à Escola Góis Calmon, nesta vila de Rodelas, Município de Glória, em os dias 19 a 22 de setembro de 1944. Regida proficuamente pela ilustre, competente, culta e dedicada educadora, Dulcina Cruz Lima, esta escola muito justamente afamada e conceituada impressiona por tudo o que nela se observa. Fato raramente visto, a Escola Góis Calmon, por seu passado cheio de tradição e glória é o que deve ser, o núcleo, o centro de toda atividade intelectual ou espiritual de Rodelas, e, sendo assim, bem pode servir de padrão ou modelo para as nossas instituições de ensino disseminadas no interior da Bahia e do Brasil. Fato ainda raramente visto, a Escola Góis Calmon impressiona, logo, à primeira vista, pelo aproveitamento e entusiasmo de seus discípulos. É um organismo vivo, animado, cheio de saúde, de vigor e de esperança. Em Rodelas, as crianças possuem uma rara e completa noção de dever e de patriotismo. São dedicadas, esforçadas, amáveis, atenciosas, sempre dispostas e disciplinadas. A professora Dulcina Cruz Lima é muito admirada, respeitada e amada de seus alunos. Tem gosto, conhecimento vasto, ótima conduta social, espírito de sacrifício; é estudiosa, apta para o ensino, aplica os programas, tem capacidade de trabalho, muito distinta para os colegas e discípulos, sempre assídua e abnegada. A professora Dulcina Cruz Lima é digna de todos os louvores possíveis, digna também de ser promovida, de ser admirada e invejada por seus colegas. A Escola Góis Calmon terá, certamente, à altura de seu passado ilustre um futuro não menos brilhantíssimo. Rodelas, 22 de setembro de 1944. Clóvis Mota de Oliveira".
A escola de Dulcina foi denominada Felipe dos Santos e assim conhecida por nós. Ignoro a razão pela qual o inspetor Clóvis Mota a chamou de Góis Calmon. Se quis oficialmente esse nome, perdeu tempo, ainda hoje chamamos de Felipe dos Santos a nossa querida escolinha, que, se já não existe fisicamente, está viva na alma de seus alunos, uns poucos ainda sobre o chão da vida. Não seria sob a orientação de Dulcina e pela concordância de seus alunos que se substituiria o nome do mártir revolucionário pelo do político. (3)
Bertino Valverde foi o primeiro inspetor escolar a pisar o chão de Rodelas e ia 10 anos depois de iniciados os trabalhos de Dulcina. Deixou sua impressão de caloroso entusiasmo. Voltaria no ano seguinte, para repetir as referências elogiosas. E ia, por onde passava, divulgando o ensino em Rodelas e promovendo sua professora. Clóvis Mota viria dois anos depois e já tinha as referências, conhecia as tradições, oferecidas pelo seu colega e pelas escolas visitadas na região antes de aportar em Rodelas. Sua palavra não é apenas de louvor e engrandecimento da escola, da mestra e dos alunos, é de franco entusiasmo. Era assim Dulcina, foi assim a sua escola e mesmo as escolas de Rodelas enquanto as coordenou como Delegada Escolar.
Missionária da educação e cultura em Rodelas. As festas escolares, os passeios recreativos e as festividades comemorativas de datas nacionais, eram, talvez os pontos mais altos de sua escola, os que despertavam maior entusiasmo na sociedade, e correspondiam a criar, nos alunos, amor pela mestra e assim, pelo aprendizado. Motivadas pelo seu exemplo, essas atividades também se desenvolviam nas mais escolas e continuariam por muito tempo.  Veja-se na palavra moça de Antônio Cesário Rezende, um seu ex-aluno que a morte quis levar muito cedo, por volta dos vinte e três anos, duas atas de atividades correspondentes a eventos dessa natureza:
"Às cinco horas da manhã - era o Sete de Setembro de 1939 -, entusiástico grupo de rapazes despertou os habitantes ao som de hinos patrióticos. Às oito horas procedeu-se ao hasteamento da Bandeira na fachada da Escola. As crianças declamaram várias poesias e o aluno do 4º ano - Antônio Eustáquio Rezende, fez um bonito discurso exaltando o nosso Auriverde Pavilhão. A Professora Dulcina Cruz Lima fez uma importante conferência sobre os Fatos e Vultos que concorreram para nossa emancipação política, aumentando com suas palavras esclarecidas, o entusiasmo dos sertanejos que também sabem amar à terra e aos seus antepassados. Às nove horas, num entusiástico desfile, o batalhão infantil alegrava a rua com seu uniforme azul e branco e patrióticas canções. Às dez horas, houve em frente à escola um animado jogo, cujos contendores ostentavam as cores de nossa Bandeira, cabendo a vitória ao famoso partido amarelo. Às dezesseis horas, houve uma concentração num palanque (erguido) em meio à rua. Cada série escolar exibiu, com perfeição, uma ginástica apropriada à sua idade e recebeu calorosa aclamação".
"Aos cinco dias do mês de setembro de mil novecentos e quarenta e um, a Escola Estadual de Rodelas, eficientemente regida pela Professora Dulcina Cruz Lima, realizou, com grande solenidade, a primeira comemoração do Dia da Juventude. A mocidade rodelense que em dez anos de proficiente labor em prol da instrução, sob a orientação da professora Dulcina Cruz Lima, adquiriu, a exemplo da mestra, uma mentalidade viva, para compreender a grandeza do amor à Pátria e um coração cheio de entusiasmo e de nobres aspirações, vibrou ardentemente neste dia que lhe foi consagrado. Às cinco horas da manhã, a população rodelense foi despertada ao ruflar dos tambores e o ritmo cadenciado dos hinos da juventude. Às oito horas foi solenemente hasteado o nosso Pavilhão no edifício da Escola Estadual, tendo discursado a escolar Domitila Fonseca, que entusiasticamente falou sobre a pátria e a juventude. Várias crianças recitaram e, ao som dos hinos patrióticos houve em seguida um garboso desfile de pelotões de escolares e de toda a mocidade, que, uniformizada de branco, deu à nossa festa alto cunho de beleza e de entusiasmo. Às dezesseis horas a mocidade rodelense teve a oportunidade de assistir, à margem do belo São Francisco, a uma regata onde alguns jovens, verdadeiros titãs do remo, na maior parte descendentes da tribo Tuxá, que habitou a aldeia de Rodelas, deram uma demonstração da força e da habilidade com que costumam vencer as águas do grande caudal. Foi um espetáculo maravilhoso. Jovens e crianças acenando bandeirinhas verdes e amarelas, no ardor da torcida, incitavam os campeões à vitória. Entre palmas e ovações o barco amarelo alcançou a primeira meta, chegando ao auge o entusiasmo. Finalmente às seis horas - o hábito faz o monge, de tanto dizer às seis da tarde, acaba-se escrevendo seis no documento, eram dezoito horas, sem nenhuma dúvida - depois de ligeiro desfile, formaram em frente à Escola para arriar a Bandeira. A professora Dulcina Cruz Lima, num eloqüente discurso, falou sobre a escola na formação da juventude, incentivando os jovens a novas investidas no campo dos estudos, para a conquista de um futuro brilhante. Ao som do Hino Nacional foi arreado Auriverde Pendão".
Os piqueniques e passeios recreativos tinham um destaque especial na escola de Dulcina e, sendo de recreio, funcionavam sobretudo como uma oportunidade para a mestra falar da natureza, dos animais e das árvores, das belezas do campo, de ecologia. Ficaram especialmente lembrados a caraibeira do cercado de Honorina Gomes e o cajueiro da Ilha da Porta. Recaiam esses passeios, geralmente, em dias da primavera e a caraibeira era um amarelo só, belo, quase fulgurante, a cuja sombra, na areia do riacho, as crianças sentavam-se ou deitavam, conforme a vontade de cada qual. O cajueiro, todo róseo, oferecia uma fronde inteira de sombra e sonho, de deleite espiritual para a professora e seus alunos - parecia que Deus estava ali, com a gente, sorrindo e brincando, cantando, também sonhando.  Em hora certa, era aberto o farnel e cada um oferecia do seu aos colegas mais próximos. Vale a pena ler a descrição da aluna de segundo ano, Eronita Almeida e a fábula de Domitila Fonseca, divulgadas no jornal escolar, que buscava estimular os pendores literários dos escolares:
"O Cajueiro da Escola. Fica na ilha da Porta o cajueiro querido da Escola. Ele é sempre verde e no fim do ano cobre-se de florinhas róseas que se transformam em lindos cajus de ouro. Seus galhos caem sobre a terra, sua copa faz ótima sombra. É sempre uma grande alegria para nós, quando a mestra diz que vamos passear no cajueiro. Ficamos muito contentes, porque, sob aquela copa perfumada, temos passado horas deliciosas... Alunos e ex-alunos têm grande estima ao belo cajueiro, pois foi nele que a escola já fez os seus melhores piqueniques. Eronita Almeida".
"A Colméia Desprezada. Uma colméia vivia em completo abandono, cheia de operárias, guiadas por uma abelha-mestra. Todos os dias as abelhinhas produziam o mel com muito cuidado e gosto, sem receberam nenhum estímulo, pois os vizinhos das abelhinhas nem se lembravam de fazer uma pequena visita àquele cortiço esquecido, para experimentarem um pouco do seu mel... As operárias passavam meses ali, bem contentes, produzindo o mel junto com a abelha-mestra e, no verão, separavam-se umas das outras; iam colher no campo o néctar das flores... Dois meses depois, reuniam-se no cortiço e continuavam o labor... Assim passaram alguns anos, sem ninguém observar o seu trabalho. Mas... um dia, um sábio besouro veio visitar a colméia! As abelhinhas ficaram todas alvoroçadas e a abelha-mestra vendo aquele pânico, levantou as asas em sinal de paz. O besouro veio examinar os trabalhos da colméia. Achando-os bem feitos elogiou-os e partiu, depois de três dias, deixando muito saudosas as abelhinhas... Desse dia em diante, a colméia ficou bem lembrada por todos e as operárias produziam o mel com mais amor à abelha-mestra, pois, só depois disso vieram a compreender o valor do seu trabalho e a eficiência de sua direção. Domitila". A fábula era uma alusão à primeira visita de um Inspetor Escolar a Rodelas. Abelhas operárias eram os alunos, abelha-mestra a professora. Vejam-se as datas: Ata da visita tem data de 24 de setembro de 1942, o jornal é do mês de outubro seguinte.
RECORDAÇÃO, foi o nome do jornal escolar, manuscrito, criado por Dulcina. O único número que me veio às mãos é o primeiro. Foi produzido em outubro de 1942. Em que periodicidade se realizava? Teria ido adiante? E por quanto tempo? Era, sem dúvida, um belo esforço, digno de admiração e louvores, editar um jornal escolar manuscrito.  Dulcina o realizou. Certamente circulava de mão em mão, o primeiro leitor passando-o ao segundo, este ao terceiro, até alcançar o último. Esse primeiro número é aberto com um editorial de sua lavra, nestes termos:
"Arrimado ao bordão da esperança, sai a lume RECORDAÇÃO, o humilde jornalzinho escolar de Rodelas.
Não tem ele, a pretensão de deleitar o público, pois, muito tenro ainda, não distende ramos floridos em cuja sombra o leitor possa embriagar-se de seus perfumes.
É elaborado, por pequeninos cérebros que, perdidos nos meandros da "cidade luz", não conseguem haurir, nas constelações do alfabeto, irradiações que iluminem as suas colunas...
RECORDAÇÃO, não presume ser um escrínio, pois não encerra ‘as imperecíveis jóias do saber', ele alimenta a esperança de despertar nos escolares, o amor à instrução e desenvolver os pequenos intelectos.
Incentivando o trabalho mental, será o relicário em que, alunos e ex-alunos depositarão as fagulhas de suas inteligências e as flores róseas de suas saudades e recordações. DCL".
São seis páginas de letra primorosa, a da professora, ela mesma trabalhando o jornalzinho, nas quais desfilam Eronita Almeida, 2º ano; Renilde Almeida, 2º ano; Carmelita Cruz, 3º ano; Maria do Patrocínio, 4º ano; Maria Cruz - Sineide; Domitila da Fonseca, essa em dois trabalhos.
Esta foi a professora Dulcina Cruz Lima, que ofereceu quase cinqüenta anos de sua vida a Rodelas, ao ensino, à cultura, ao desenvolvimento local. Sente-se o amor derramando pelas bordas do coração, em cada uma das manifestações acima transcritas, acerca de Dulcina, de sua escola, do aprendizado que ali se fazia, das festas, do trabalho, do próprio amor.
Nascida a 20 de maio de 1913, marcava, ao falecer, 68 anos de idade. Seu nascimento se deu na fazenda Pedra Comprida (Cercado), às quatro horas da tarde. Seus pais foram Policarpo Tolentino Rodrigues Lima e a primeira esposa deste, Antônia da Cruz Lima, sendo avós paternos Domingos Rodrigues Lima e Maria Alventina Lima; maternos Antônio Felipe Gomes da Cruz e Tereza Merência de Jesus. Do lado do avô Domingos Rodrigues era bisneta de Francisco Rodrigues Lima e Senhorinha Maria de Sá; trineta, pelo lado da bisavó Senhorinha, de Domingos da Fonseca e Azevedo e Tereza Gomes de Sá. Do lado da bisavó Maria Alventina, era trineta de Francisco Tolentino da Fonseca e Emília Maria da Conceição, sendo, por este bisavô Francisco Tolentino, trineta de Maneol Ciriaco da Fonseca. Do lado da avó Tereza Merência, era bisneta de Miguel Gomes da Fonseca e Ana Maria da Fonseca - Aninha. Trineta de Lucas Fernandes da Fonseca e Bernardina Ramos de Assunção. Por parte da terceira avó Bernardina, vinha a ser quarta neta de Lucas Fernandes de Rezende, e possivelmente quinta-neta (ou sexta) de Manoel da Roxa de Souza e sua mulher Maria Ramos da Souza, moradores na fazenda Sorobabel em 1779. Ainda pelo Sá – Tereza Gomes de Sá, segunda esposa de Domingos da Fonseca Azevedo -, descendia, certamente do capitão Antônio Gomes de Sá, de 1696. Era, por parte do bisavô Miguel, segunda vez trineta de Domingos da Fonseca e Tereza Gomes de Sá. Vê-se que tinha, a partir dos trisavôs, tripla carga do sangue Fonseca, descendendo dos irmãos Domingos (duas vezes), Manoel Ciriaco e Lucas Fernandes. Formada pela Academia Santa Gertrudes, de Recife, Pernambuco, em 1931, aos 18 anos, aos 20 entrava em Rodelas.
Dulcina é a única glória inapagável de Rodelas nos caminhos da educação e da cultura, que falarão dela para sempre.
NOTAS
1 - Há, aqui, um engano, quanto à chegada de Dulcina a Rodelas. Ela chegou ao começo de 1933.
2 - Documentos do arquivo da Professora Joana Lima Rezende da Fonseca, em cópia no arquivo do autor.
3 - Felipe dos Santos, nascido em Portugal em data que não se sabe, chefiou a revolução mineira de 1720, em Vila Rica, o mesmo chão que 59 anos depois seria revolucionado pelo Tiradentes. Foi sentenciado à morte e enforcado, tendo, ainda, seu corpo preso à cauda de um cavalo e, assim, exibido nas ruas da cidade. A sentença dos bravos tinha o seu toque de perversidade: o Tiradentes também a sofreria, sendo, depois de morto, o seu corpo cortado em pedaços que se espalharam pelas estradas das Minas Gerais, para exemplo dos fracos.
4 - Há um equívoco na informação de o “ponto mais norte da Bahia” em Rodelas. Estará entre Juazeiro e Sobradinho

 
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Apêndice do livro Rodelas, Curraleiros, índios e Missionários
Póstuma
Encontro entre os meus manuscritos esquecidos, uma peça que não datei. A intenção era publicar. Por falta de oportunidade, ficou inédita. Confesso que não me lembro se dei-lhe ao menos o destino de fazer chegar aos familiares de Dulcina. Penso muito e trabalho sem parar, por isso mesmo esqueço muito. É oportuno divulgar o que se faz com todas as forças do coração:
Em 1933, quando Lampião de um lado, do outro a polícia volante instituída para dar-lhe combate - os dois juntos desabavam como um castigo sobre almas sem pecado, e na sua esteira a calamidade da seca dizimava a sobra da perseguição ao sertanejo e seus escassos bens, em março de 1933, Dulcina Cruz Lima chegava a Rodelas com uma nomeação de professora primária e as mãos cheias de cartilhas e primeiros-livros. De quebra, giz branco e um quadro-negro.
Até aí, haviam sido o mestre-escola e a palmatória. Instalada a escola oficial no então povoado de Glória, mais uma aldeia indígena do que uma povoação de brancos, Dulcina deu-lhe o nome de Felipe dos Santos, em homenagem ao chefe da rebelião mineira de 1720, cujos ideais de liberdade, talvez o enforcamento e a exibição pelas ruas de Ouro Preto atado à cauda de um cavalo, a sensibilizaram. Nas horas de depressão, doença que eventualmente acomete a todos nós, face a alguma dificuldade maior e às incontáveis grosserias e manifestações de ingratidão de muitos, sorria dizendo: - a tragédia do patrono acompanha a escola e se reflete sobre ela e até sobre a professora, mais de duzentos anos depois...
Em Rodelas ficou, ainda que recebesse propostas de mudança para lugares outros, melhores. Em Rodelas permaneceu, apesar do constante perigo, da permanente ameaça do cangaço, Lampião entra-não-entra no povoado onde a segurança se constituía de civis armados. Nascida na fazenda Cercado, na jurisdição de Rodelas, foi criada entre Abaré e Belém do São Francisco, Pernambuco, de onde saiu para o internato de Pesqueira. De modo que, quase não conhecia o povoado onde se fizera o tronco de um dos ramos de sua família - os Fonseca e os Rodrigues Lima. Mas, era a sua terra e a atraía. Era a raiz. Aí continuou, não obstante todas as dificuldades, toda a falta de compreensão, todo o isolamento do mundo civilizado de onde viera. Moça culta e inteligente, muito mais educadora do que simples professora primária, foi implantando, lentamente, a civilização e a cultura entre aquela gente que, contrariando a regra, absorvera os costumes indígenas ao invés de transmitir os seus ao nativo.
De seu programa constava aulas de ginástica, esporte e jogos esportivos, recitais de poesia, arte dramática, horas recreativas e festas escolares, a irrecusável comemoração das datas cívicas. O Dois de Julho, que chamava Independência da Bahia, o Sete de Setembro, o Quinze de Novembro, o Dezenove de Novembro, o Vinte e Um de Abril, que em certa época foi Dois de Maio, todos os eventos da Pátria, sem esquecer o Vinte e Dois de Setembro, quando levava as crianças a piqueniques onde não faltava a árvore a plantar. Aulas de civilização na escola e nos passeios das casas à hora da visita e da palestra com os amigos. Civilizou, no bom sentido da palavra, uma terra de incivilizados de todos os níveis, de brutos e embrutecidos. Foi uma missionária em uma terra que precisava, então, do trabalho missionário. Quis plantar, sozinha, pelo trabalho e a persistência, pelo amor, a semente que trazia no cofre de sua mente - a literatura e a arte dramática, ao lado do ensino geral, e adubou-os com o fertilizante do coração. Sua dedicação era tanta, que chegava a manter uma biblioteca sua, particular, para emprestar livros aos meninos mais adiantados. Sua árvore cresceu e frutificou, lançou, longe, novas sementes.
Foi regente da Escola Felipe dos Santos, posta lá em cima, na sala do sobradinho onde fui seu aluno - durante mais de trinta anos. No princípio, professora única na localidade, mantinha uma matrícula de sessenta alunos. Mais adiante, vieram as suas alunas já feitas professoras e foram suas colegas. Só aí passou ao atendimento de trinta alunos, que nunca deixou de ter até o fim, sua escola preferida entre as demais. Ex-alunos seus, queriam os seus filhos em sua escola. E assim foi sem uma licença única, sem outro afastamento que não fosse o das férias anuais. As escolas se multiplicaram, professoras entravam e se removiam para lugares mais futurosos. Ela ficava. O povoado se emancipou politicamente e foi sede de município. Dulcina foi nomeada Delegada Escolar, a primeira Delegada Escolar de Rodelas, mantendo-se no cargo por mais dez anos.
Quando se aposentou, contava mais de quarenta anos de magistério. Já cansada, doente, envelhecida. Aposentada voltou a residir em Belém do São Francisco, terra de sua infância e primeira mocidade, onde estavam alguns dos seus familiares mais próximos. Sozinha. Não quis casar-se, não obstante o assédio dos primeiros tempos. Quem acompanhou sua vida, chega a supor que ela não teve tempo de pensar em casamento, tão entranhada vivia no seu amor ao ensino e ao trabalho, aos seus alunos. Na verdade, casou-se com o trabalho e a ele se dedicou a vida inteira, amou-o intensamente. Em Belém, aposentada, não deixou Rodelas, onde ia constantemente. Passava dias, abria o velho sobrado dos antigos familiares, mandava limpá-lo, fazia conservar.
Rodelas tem, hoje, fruto da semente que aí plantou em 1933, duas escolas de 2º grau, das quais saem anualmente duas turmas de professoras que se espalham pela região. Não apenas na região, mas em Salvador, Recife, Rio, São Paulo, Brasília, encontram-se ex-alunos seus e de suas ex-alunas, nesta sucessão de quarenta anos. Entre estes há médicos, bacharéis, engenheiros e até escritores e poetas.
Se alguém prestou serviço e se deu a uma terra, foi como Dulcina a Rodelas. E neste caso, com imensos reflexos sobre a região, que absorveu seu exemplo de trabalho e amor. Cumpriu a missão como poucos o fariam em qualquer parte do mundo, em qualquer circunstância e posição social. A própria emancipação política do município está no embrião da semente de 1933, uma vez que foi idelizada e pleiteada, reivindicada por ex-alunos seus e pelos amigos mais próximos.
No dia dois de outubro, em Recife, para onde fora transferida uma semana antes em tratamento de saúde, passou à vida eterna. Bondosa como toda a vida, morreu falando no nome dos amigos ausentes.
- Dulcina, tua lembrança ficará conosco, com os nossos filhos, com os filhos dos nossos filhos, e quando, na distância do tempo já não fores lembrada das gentes, renascerá em cada ser do nosso sangue, a semente.
* * *
MANUSCRITO DE DULCINA LIMA.
Confiado ao autor, o esboço a seguir, destinava-se a um trabalho solicitado pelo Inspetor Regional, a ser publicado no Boletim Regional de Ribeira do Pombal. Não o conluio por falta de material de pesquisa. Em homenagem à querida amiga, transcrevo-o textualmente:
"Chamava-se "Sertão de Rodelas" a extensão territorial compreendida entre a foz do Riacho do Pajeú, até a embocadura do Rio Carinhanha, da nascente do Rico Carinhanha até o extremo norte do Vale do Canindé. Esta é a conclusão obtida, entre as variadas afirmativas dos historiadores, sobre os limites dos domínios do "Sertão de Rodelas".
Rodelas - era a denominação dada às diversas aldeias desta região, fundadas pela tribo dos Tapuias. Entre os Tapuias, os índios que mais atuaram, conquistando domínios, fundando aldeamentos, foram os Cariris, o seu mais numeroso e importante ramo.
A nação Tapuia dominou às margens esquerda e direita do grande São Francisco. Conquanto fossem valorosos e bravos, os nativos gostavam da paz.
Diz a tradição que os índios adornavam-se com rodelas de ossos e daí veio o nome dado às aldeias de Rodelas, mas afirmam os historiadores Barbosa Lima Sobrinho e Pereira da Costa, que o vocábulo Rodelas, provém do formato de um escudo circular usado pelos Tapuias como arma de guerra.
Por usar este escudo e ser valente guerreiro, o índio Francisco, foi cognominado Francisco Rodelas. Este denodado indígena, foi nomeado a 29 de agosto de 1674, para o cargo de chefe das aldeias de Rodelas, como o posto de capitão.
No decorrer do tempo o elemento europeu foi se apoderando dos terrenos mais prósperos, fundando vilas, afugentando os nativos, que iam-se aglomerar em outras aldeias mais poderosas, e assim os aldeamentos foram se reduzindo.
Desapareceu o nome de "Sertão de Rodelas", e cada aldeia restante, recebeu uma outra denominação. Somente esta aldeia de Rodelas, à margem direita do Rio São Francisco, nas proximidades da ilha de Sorobabé, passou às gerações futuras como o nome de Rodelas.
Era habitada por índios da tribo Tapuia e que se cognominavam de Tuxá. Viviam da pesca e da lavoura, eram exímios remeiros e ótimos nadadores, dirigindo os barcos com destreza e perfeição.
Rodelas permaneceu em categoria de aldeia até 1897. Após a guerra de Canudos, em decorrência da atuação de alguns índios em favor do fanático Antônio Conselheiro, foi extinta a aldeia. Em 1942 conseguiram os descendentes da tribo e alguns índios remanescentes, já bem idosos, elevar novamente Rodelas à categoria de aldeia. Foi instalado um Posto Indígena, onde um chefe está sempre em contacto com os Poderes Públicos. Foi grande a vantagem para a população, pois a FUNAI dá muita assistência ao aldeamento e a todos os seus componentes.
Os indígenas dão expressão às suas alegrias, dançando o toré, onde expressam também algumas mágoas, cantando a mais popular estrofe das suas canções:
A garça vai avoando
com as penas que Deus lhe deu.
Contando pena por pena,
mais pena padeço eu.
Banhando-se nas águas do belo São Francisco, a cidade de Rodelas ergue-se ao lado da aldeia e há entre os seus habitantes perfeita harmonia e os mesmos direitos. Sente-se que os seus fundadores, tinham tanta atração ou interesse pelo portentoso caudal e por suas férteis ilhas, que não se contentaram em morar alguns metros distante das águas. Ou anteviram eles, que só o São Francisco, por meio da lavoura, poderia dar-lhes prosperidade ou traziam na alma a predestinação de uma barragem, que num futuro distante, inundaria todo o esforço e progresso de seus descendentes.
Rodelas - distrito; Rodelas vila florescente e promissora, integrou o município de Glória até o dia 31 de julho de 1962, data da sua emancipação política.
A 7 de abril de 1963 foi a instalação da nova cidade.

FOLCLORE:
   1 - O toré dançado pelos indígenas.
   2 - O zabumba com vários pífanos e 1 caixa, tocados pelos morenos, música típica das festas de S. João, o ínclito padroeiro da cidade.
   3 - Os penitentes, devoção exercida por homens de todas as estirpes.
   4 - A quadrilha - dança complicada e agradável, usada por todos ainda hoje, nas festas de S. João e que, no passado, era o ponto alto de toda a festa, dançada pelos pares de noivos ou namorados à meia noite ou ao encerrar-se o baile.
   5 - Realizavam promessas com danças de S. Gonçalo, importando a turma de dançadores do jatinã, na margem esquerda do S. Francisco." - Dulcina Cruz Lima.

3
João Justiniano da Fonseca
(Do inédito – No Correr do Tempo - Memórias)
UNIVERSIDADE FELIPE DOS SANTOS.    
Como vens tão vagarosa
Ó formosa e branca lua!
Vens com tua luz serena
Minha pena consolar.

Ó que lúgubre gemido
Sai daquele cajueiro.
             É do pássaro agoureiro
O sentido lamentar.

Geme aos céus mangueira antiga
Ao mover-se o rouco vento.
E renova o meu tormento,
Principia a delirar.

Já me assaltam, já me ferem,
Melancólicos cuidados.
São espectros esfaimados
Que me querem devorar

Esse poema entrou em minha memória lá pelos 14, 15 anos. Estava em algum escondido recanto e ressurge pondo-me lágrimas nos olhos quando abro o título acima — UNIVERSIDADE FELIPE DO SANTOS. Ó Deus, quanto a mim, tem custado em lágrimas, nesta fase final da vida amar o meu passado, lembrar as pessoas ao lado das quais vivi a infância e adolescência... Eu me sinto tão longe no tempo, tão perto no coração! Depois que faltou o primeiro irmão isso tem sido pior. Parece que há um lago no fundo dos meus olhos que transborda à minha revelia, quando volto à catingueira da Fazenda Nonô, quando vejo minha mãe bordando e cantando, sentada no chão batido da sala... Quando olho para as vacas no curral no fundo da casa de Rodelas... Foi ontem, Senhor, é neste instante ou foi há 80 anos? Não me perguntem o título do poema e o nome do autor, não me ficaram no arquivo. Casemiro de Abreu ou Gonçalves Dias — os primeiros que li... Não sei, não sei nem tenho o livro dessa leitura. Sei que me vem de Dulcina, de sua estante, da Escola Felipe dos Santos, do sobrado do major João Alventino. Até na escolha do nome da escola Dulcina foi grande. Quis homenagear o mártir, o sacrifício, a pobreza, a humildade.
Em 1933 foi Dulcina Lima. Mocinha, recém formada na Academia Santa Gertrudes, em Recife, Pernambuco. Creio que quando começou a estudar ainda não havia escola de professora em Petrolina. Só mais tarde funcionaria ali a chamada Escola Normal, para formação de professoras.
     Pernambuco foi por muitos anos, a sede cultural da região baiana do São Francisco. Em Petrolina, nos velhos tempos. Mas, já depois da formatura de Dulcina. As moças de Curaçá, Juazeiro, alto e baixo São Francisco vinham cursar a escola normal de Petrolina. Digo moças sem segurança. A escola era de freiras e havia um regime de internato que acolhia as estudantes de fora. Poderia ocorrer que rapazes de outras cidades se acomodassem em república ou pensionato? Não tenho disso, informação. Na região de Abaré, Chorrochó, Macururé e Rodelas, quem queria e podia estudar, ia, como foram Dulcina e sua irmã Durvalina para Recife, Pesqueira ou Petrolina. Ainda hoje, Pernambuco é essa sede cultural para Abaré, Chorrochó e Rodelas. Continua sendo em Pernambuco, Belém do São Francisco, que os moços e as moças dessas povoações vão buscar a escola de nível superior, representada por uma licenciatura em alguma das áreas de educação lá ministradas. Os que pretendiam cursos como direito, medicina, economia e outros não ministrados, então esses se encaminhavam para Salvador ou Recife, Aracaju ou Maceió. Acho que não me expresso bem, fantasio um pouco. No passado, a única pessoa de Rodelas que realizou um curso superior, foi o Dr. José Lima, que estudou medicina em Salvador, formando-se em 1935. O segundo a realizar um curso superior, foi Florêncio Almeida Lima, que sendo músico no Exército Nacional, diplomou-se em harmonia, no Rio de Janeiro. O terceiro, o Salvador Justiniano, já em 1959 — e estava-se 24 anos depois do Dr. José Lima. Como era difícil, pobre e lenta minha terra! Hoje, os que podem estudar, e já não são poucos, espalham-se por essas cidades. Andam por dezenas. E há ainda e felizmente, os que não podem, mas realizam. Enfrentam a cidade grande, o emprego modesto ou médio e cursam, a suor noturno, a universidade.
     Em 1933 foi Dulcina Lima. Essa alma de mestra que Deus fez baixar a terra e pôs em Rodelas durante toda a sua vida, para ensinar e educar, para viver e sofrer, sofrer sem gozo e sem outra preocupação que não fosse Rodelas. Não cabe em um capítulo, caberia em um livro de mil páginas. Está no meu coração, no coração de muitos de minha geração e gerações seguintes até 1973. Pálida é a imagem que minha imaginação pode criar a seu respeito, a respeito de sua grandeza espiritual, de seu amor e dedicação a Rodelas. Só uma coisa me compensa dessa incapacidade de pintar sua alma, é que a amo desde os primeiros dias de escola, sem arrefecimento. Já não terei muito a viver, mas sua presença suave irá comigo ao fim, ao lado de minha mãe e de mãe Rosa. No céu, se há céu, Deus — as pessoas me perdoem a dúvida —, pelo menos ela, minha mãe, mãe Rosa e meu pai, meu filho e meus irmãos quero que estejam me esperando.
Dulcina foi uma universidade. Ensinava porque amava o ensino, porque se realizava ensinando. Talvez por que fosse uma maneira de amar o semelhante — ela, que não tinha inclinação para o casamento, por isso morreu solteira, apesar de muitas vezes requestada. O ensino, para ela, foi uma lição de vida, de vida inteira. Chovesse ou fizesse sol, sua escola estava de portas abertas, entupida de meninos, matrícula sobre matrícula por volta dos 60 alunos nos primeiros tempos. Salvo algum passeio, gozava as férias escolares em Belém do São Francisco, onde residiam seus familiares. No primeiro dia do ano escolar, sem nunca faltar, iniciava as suas aulas. Chegava antes para as matrículas. De 1933 até 1963 quando foi nomeada Delegada Escolar. E no batente, visitando escolas e orientando a partir daí até 1973, quando foi demitida do cargo em razão de perseguição política. Como isso foi cruel! E dizer que quando foi demitida, Dulcina já havia encaminhado o pedido de aposentadoria, exatamente para deixar a vaga aos seus perseguidores sem passar pelo constrangimento da expulsão. A história da demissão está contada no livro "RODELAS — Curraleiros, Índios e Missionários", páginas 243/244. As mestras de Rodelas nos primeiros tempos, vinham por terem sido suas alunas. A semente se fez árvore, floresceu e frutificou. Quem em Rodelas, em termos educacionais e culturais não vêm dessa árvore? E a semente gera frutos ainda. Rodelas continua sendo, não obstante a miséria em que se degenerou o ensino médio por toda parte nas escolas públicas, uma terra de boa escolaridade e bom ensino. E tudo partiu de Dulcina. As primeiras professoras depois dela, foram suas alunas. A seguir, alunas de suas alunas, creio que até hoje. Duas ressalvas de que sei: a professora Maria Maniçoba, que veio de Itacuruba e a professora Maria Oliveira Meneses que veio de Campo Formoso. Duas honrosas ressalvas. Deixo em aberto a era mais recente, depois da nova cidade, que desconheço. Dessa nova cidade, aonde vou de raro em raro abraçar São João, desconheço tudo. Minha terra cresceu muito para o meu gosto. Manoel Bandeira escreveu em algum de seus poemas sobre Recife: "Minha terra cresceu, está uma cidade grande... Diabo leve quem fez crescer minha terra"! (mais ou menos assim é o texto). Pois bem, digo eu a mesma coisa: "Diabo leve quem fez crescer minha terra! Era tão bom o meu terno povoado da infância!”.
Neste instante eu vejo nitidamente. O sobrado, a escadinha estreita, de tábuas de facheiro. O assoalho, lá em cima, igualmente de tábuas de facheiro. Um sobrado, construído pobremente, entendo hoje, e só hoje o entendo, porque então o considerava de luxo, o único de Rodelas, por isso mesmo, rico para todos nós. Parece que o major João Alventino teve o gosto de possuir um sobrado semelhante ao habitado pelo seu avô Domingos da Fonseca na Rapador. Com certeza conheceu aquela residência. Quando o avô faleceu, ele já era adulto.
Ali, no sobrado de João Alventino, foi a morada de Dulcina e a escola. Trinta anos. E lá estava eu em um dos bancos da frente. Estudando e sonhando, sonhando e estudando.
Dulcina primava no ensino e no estímulo à redação e à leitura. Ensinava caligrafia. Apresento a seguir, algumas provas de final de curso de seus alunos, com rápidas observações sobre a correção. A letra é tão próxima, entre aluno e mestra, que mal dá para entender a emenda. Parte desse material irá impresso em original, a título de ilustração. Vejamos a primeira prova: "Antônio Cesário Rezende, 1936. Era a primeira turma, que se iniciou em 1933 e que foi a minha. Redação. Duas correções: Ele escreve:
"Quando chega o tempo de inverno não vê-se mais o sol."
A correção: "não se vê".
A outra:
    "Não se vê mais os pássaros saudarem o grande astro, pois não vêem o nascer desse durante esse tempo. Que não sentem os filhotes do aquecimento produzido pelo sol"... A emenda:
     "Que falta não sentem..."
Uma prova de 1941. Edite Gomes da Fonseca. Não menciona a série. Sendo uma carta de despedida, será sem dúvida, do 4° ano. Título: "Prova de exame. Português".
Texto:
    "Mui digna professora, felicidades! Que Jesus espalhe sobre vossa cabeça as graças celestiais, concedendo-vos muitas felicidades.
Venho por meio desta, fazer-vos a minha última despedida. D.Dulcina, vou partir desta escola.
Quase que não tenho palavras que possa exprimir".
Emenda: 
 "Quase não tenho palavras que possam"...
Prova de 1944. Eronita Almeida Fonseca. Aqui não há indicação de que se trata de prova. É uma carta encontrada no arquivo da mestra. No fecho, em seguida a assinatura, registra — 4° ano. Seria a prova final:
"Rodelas, sete de agosto de 1944.
"Estimada Risalva.
Faço-te esta missiva, para te participar a morte da nossa coleguinha Toínha, que Deus levou, tão cedo, para a eternidade".
Não há emenda de correção. O texto estaria correto? Parece que sim. Erro não vejo. Como não entendo disso...
Agora o Salvador, que então assinava Salvador Justino. Data de 1946. "Prova final do 4º ano. Português". É uma prova longa. Além da redação, apresenta quesitos sobre correção de texto e aritmética. Na redação, sem emenda corretiva, aparece, no alto, um redondo V 10 para a redação e um 9,5 — "Aprovado com distinção", parecendo que para o conjunto.
Inteiro o texto, com floreios e tropos literários:
        "Era tarde!...
Passeando nos cascalhos do São Francisco contemplava em êxtase o espetáculo vespertino.
O astro rei desprendia espadas de fogo como se quisesse incendiar o infinito. As nuvens diluíam-se em ouro. Depois o fanal sidéreo mergulhou no ocaso e o firmamento, com a ausência do sol, (não legível) os seus raios matizados. Mirando aquelas maravilhas senti uma alegria inenarrável.
Súbito, ouvi um grito de desespero.
Era uma pobre viúva que chorava amargamente. Tinha ela ido mendigar pela cidade e quando voltou, encontrou sua choupana incendiando-se tendo dentro seu filho. A mísera chorava pedindo socorro!
Quando, na abnegação de mãe ia lançar-se ao abismo, para salvar seu filhinho, um homem de coração nobre e destemido, vendo tão grande aflição, mergulhou no fogo devorador, trazendo a criança nos braços, apresentou-a a mãe.
A ditosa mãe, de joelhos, agradeceu a nobre ação".
Isso é um conto. E muito bem engendrado para os 14 anos. Se tivesse continuado, o Salvador teria sido o primeiro escritor de Rodelas. Então eu seria hoje, o segundo.
Nota:
 Este capítulo é de 2004, No São João de 2007, fui sair sozinho na cidade e me perdi. Era noite. Rodei o carro de rua em rua sem saber onde estava. Precisei tomar como guia, um moço que dirigia uma moto, que foi me deixar na entrada da pousada.


O INTELECTUAL

... Dulcina foi a orientadora, a responsável pelo despontar do pálido intelectual e até a força, o estímulo para que esse continuasse em mim. Na escola e nos meus tempos de adolescente em Rodelas, era sua biblioteca que me abastecia de leitura. E ao mostrar-lhe os primeiros escritos, foi a entusiasta incentivadora. Quando apareci, muito depois, poeta publicado, ela lia orgulhosa os primeiros poemas e mostrava os erros gráficos, as falhas em vernáculo. Já não adiantava a revisão. O livro estava na rua. Valeria mais esse ensinamento.
Quando prefeito de Rodelas, ela funcionou como oásis naquele deserto intelectual. Conversávamos horas sobre literatura e sobre o meu miúdo escrever. Sugeriu que eu tentasse o romance. Até então só escrevia poesia e relatórios oficiais. Foi, com efeito, depois que deixei a prefeitura, em janeiro de 1971, que me iniciei na ficção. O primeiro texto era um amontoado de intrigas políticas, trabalho praticamente autobiográfico, que ainda hoje está no meu arquivo de velharias. Em sua primeira viagem a Salvador para cuidar de assuntos escolares na Secretaria de Educação, foi minha hóspede. Mostrei-lhe o catatau e pedi suas opinião. Não pôs os pés na rua antes de ler o escrito de começo a fim. Fechou o datilografado e me disse:
- João, isso não é romance. É a vida alheia. Você não pode publicar nunca. Iria fazer um mundo de inimigos. E apontava o nome dos “personagens”:
- Esse é fulano. Esse é beltrano, é...
Fechei a papelada e recomecei. Sairia “Cacimba Seca”, com o aproveitamento de parte do antigo texto.
Mais adiante me passou um manuscrito com um resumo da história de Rodelas. Era um pretendido trabalho destinado a publicação no boletim da Inspetoria Regional de Educação em Ribeira do Pombal, que não concluiu por falta de elementos indispensáveis para pesquisa. E me disse:
- João escreva a história de sua terra.
Foi a semente do livro “Rodelas, Curraleiros, Índios e Missionários”. Essas coisas são uma repetição do muito que já escrevi sobre Dulcina, aqui e alhures. Não me cansa dizê-las e repetir.



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Salvador Justiniano da Fonseca

Dulcina Cruz Lima

Em 1933, precisamente no mês de março, chegava ao distrito de Rodelas a professora Dulcina Cruz Lima, nomeada para lecionar na primeira escola estadual. Formada pela Academia Santa Gertrudes, em Olinda, assumiu com vinte anos de idade, o cargo de professora, trazendo consigo sabedoria, exuberância, elegância e a força de uma imaginação criadora, envolvente e apaixonante. Enfrentou as agruras de um pequeno povoado, à época sem luz elétrica, água encanada, saneamento básico, e com um povo carente de tudo, mas, cheio de amor e entusiasmo, demonstrados na recepção de boas vindas.
A sua vida, cantada em prosa e verso por João Justiniano da Fonseca, ex-aluno, revela a devoção e o amor ao magistério, atividade a que se dedicou com grande afinco, exercendo-a com esmerado zelo e brilhantismo por mais de quarenta anos. Desempenhou sua função com dignidade e abnegação sacerdotal, revelando uma grande qualidade moral, visão ética e profunda consciência profissional, sem deixar de lutar contra o abandono da educação. Como oradora e palestrante era de expressão correta e fácil, fluente, pujante, convincente e cordial.
Marcante a sua preocupação em ministrar, além do ensino curricular exigido, matérias como geometria, astronomia, geologia, física e química, elaborando apostilas para facilitar o aprendizado de seus educandos. Preparava com empolgação as comemorações das datas cívicas, que eram saudadas pelos alunos com alvorada, hasteamento da bandeira, declamação de poesias, jogos esportivos e a beleza da ginástica dos bastões verdes e amarelos, de uma coreografia contagiante. A Escola Felipe dos Santos, sob a direção de Dulcina, foi considerada pelo então inspetor escolar Cloves Mota, padrão e modelo para a Bahia e o Brasil.
Não podemos esquecer o sobrado que, com sua beleza arquitetônica, fazia parte da vida de Dulcina e alunos, pois além de residência da professora, lá funcionavam a escola e o museu. Ao seu lado, majestoso o velho tamboril, que na primavera cobria-se de flores brancas e perfumadas; à frente dois frondosos tamarindeiros que chamavam a atenção, tamanha a beleza e semelhança.
Com a emancipação de Rodelas, Dulcina foi nomeada para o cargo de Delegada Escolar, exercendo-o com a postura dos bravos e a dignidade dos imortais. Nele se manteve, com pequena interrupção, a pedido, ate a aposentadoria, nunca esquecendo, contudo, a cidade que lhe acolheu e que muito lhe deve, tanto pela dedicação à sua gente, como pelo progresso alcançado.
A memória de Dulcina, por gratidão e justiça, deve ser ressaltada e cultuada sempre, a fim de que o seu exemplo continue a render frutos para as gerações atuais e futuras.
Com orgulho de seu ex-aluno.



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João Soares de Almeida


Professora Dulcina Cruz Lima


     Falar de D. Dulcina é muito gratificante, já que a sua lembrança me traz o melhor da minha infância...

   Começo relembrando o único sobrado, prédio majestoso para a pequena cidade de Rodelas, com dois grandes tamarineiros à sua frente, onde as crianças, como eu, subiam para tirar tamarindos.

     No primeiro andar se situava a capela, onde algumas vezes tínhamos que ficar de castigo, retardando o almoço, por não termos cumprido corretamente alguma tarefa importante ou por travessuras infantis. Aí também estava o
mais importante: a grande sala onde a Professora Dulcina lecionava. De lá podíamos ver a rua e o nosso Rio São Francisco.   O andar térreo era ocupado pela residência da mestra e pela farmácia do Dr. José Alventino Lima - grande médico, que muito ajudou o povo - e do seu cunhado.  Na parte lateral direita do sobrado havia uma árvore rara, um Tamboril, que anunciava a primavera, pois se tornava mais verde e eliminava um perfume característico - o que nos lembrava a proximidade do final do ano e o início das provas finais.

          Quase todas as noites, cedo,  D.Dulcina se dirigia à minha casa, onde se punha a conversar com meu pai e alguns amigos, para passar o tempo, na ausência de TV e de outras coisas da modernidade.  Muitas vezes estas conversas giravam sobre a escola - e surgiam elogios ou críticas sobre o meu comportamento. Escutá-los foi muito importante para mim. Com as críticas desfavoráveis eu me obrigava a estudar mais, para evitar novas críticas, e os elogios me fortaleciam e me incentivavam a prosseguir.
     Dona Dulcina foi, para toda a pequena  Rodelas, uma referência exemplar em educação, seriedade e honestidade. A Mestra igualmente simbolizava, para todos os seus alunos e para mim, em especial, a civilidade, a nobreza de caráter, a elegância e a erudição. Sempre cuidadosa e impecável, ela
implantou, no seio dos habitantes da cidade, as bases e as regras da boa convivência, dos hábitos saudáveis e dos costumes civilizados. Adultos e crianças passaram a ser mais cuidadosos com alimentação, comportamento social e higiene, inclusive corporal. A sua maneira espartana de vida foi dedicada exclusivamente ao ensino e à população rodelense.
     A minha muito grande admiração pela Professora Dulcina, por seu saber, sua vontade e seu jeito de ensinar não era gratuita: ela lecionava português, história, geografia, ciências, matemática, teatro... Além de
desenvolver letras e músicas, criava também as histórias para o teatro e preparava os atores para a apresentação das peças, que eram encenadas em grandes ocasiões, como Sete de Setembro, Semana Santa, etc.
     À medida que concluía o período de 4 anos em sua escola, cursava o Colégio Marista, o Colégio Central e a Faculdade de Medicina,  a minha admiração por D. Dulcina mais crescia. É que eu sentia, nas várias etapas escolares, o quanto tinha aprendido com a minha primeira professora: boas redações, em português correto, juros, percentagem, regra de três e, por incrível que pareça, raiz quadrada! Apenas no terceiro e quarto ano do Ginásio é que estudei novamente estes assuntos. Para os meus surpresos colegas, eu era um verdadeiro "gênio"...
   Hoje, quando revejo minhas provas daquela época, percebo o quanto foram importantes, para a minha formação, os ensinamentos da minha primeira professora!
     A Professora Dulcina recebe agora uma homenagem mais que justa pelos grandes serviços prestados a uma geração de jovens que "venceu na vida" graças aos seus ensinamentos. Após todos estes anos, se eu fosse chamado a escolher e a dar uma nota ao meu "melhor professor", este seria a Professora Dulcina Cruz Lima, nota 10 com "Distinção e Louvor"!

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Joana Lima Rezende

Dulcina Cruz Lima em nossas vidas

Às vésperas de realizar um grande feito para a cidade de Rodelas, em homenagem à Dulcina Cruz Lima, o nosso poeta e escritor João Fonseca me pede um depoimento sobre a nossa grande educadora, o que sempre me parece uma tarefa extremamente prazerosa. Doces lembranças do meu tempo de criança na escola, aluna da professora Dulcina, na escolinha do Sobrado afloraram, numa sensação que me transportou com muita saudade a esse passado tão feliz.
Olho para trás e recolho imagens que não se apagaram da memória. Recordações antigas, mas sempre presentes de coisas que vivi e testemunhei, sobre pessoas, lugares e emoções. As lembranças fluem e a gente procura na memória o que se passou na melhor fase de nossas vidas, bonitas demais para que sejam esquecidas.
Antes de tudo agradeço e convoco comovida a todos e todas que foram alunos/as de Dulcina, para que se juntem a mim e numa só emoção possamos recordar aquela mestra que nos educou, que nos fascinou, despertando em nós o desejo de descobrir o mundo, na certeza de que para todos estava reservado um futuro melhor..
Estes anos foram marcados pela imagem de Dulcina, pessoa indispensável em nossa vida e na vida dos rodelenses. Muito menina ainda me vi num banco de escola diante de uma professora linda, bem cuidada, passando para nós seus alunos, o propósito de transformar as nossas vidas, levando-nos a nos apaixonar pela escola e por tudo que nela existia.
Naquela escolinha tão simples ainda não havia mobiliário, cada aluno tinha o seu tamborete para sentar e escrever, colocando o caderno no assento e ajoelhando-se no chão. Também não existiam os livros como hoje. Dulcina trazia do Recife um único exemplar de cada matéria e com estes livros acontecia o milagre do aprendizado.
Todos procuravam imitar a caligrafia perfeita da professora, seus alunos aprenderam a conhecer as cidades, os países, o mundo de uma forma que se alguém viajasse, teria a impressão de já haver estado ali. Os acidentes geográficos, tivemos a oportunidade de identificá-los através das aulas dadas, olhando pelas janelas e visualizando o rio, as ilhas, horizonte, cachoeira, estreitos, serras, que nos foram presenteados pela natureza, bem a nossa frente.
Éramos avisados da hora da aula, da hora de irmos para casa, do recreio, ouvindo a sineta tocada da janela. O “tímpano” a pedir silêncio, a palmatória nos argumentos, nos deixavam afiados na matemática. Até a rapadura ainda quente na palha, vinda do engenho, trazida escondida pelos colegas para quem ficasse de castigo...
Estes anos foram marcados pela companhia fiel do velho e amado pé de tamboril a alegrar a sala-de-aula, com suas flores alvas na primavera e abrigando a passarada e seu canto. Companheiro inseparável a inspirar futuros poetas.
A biblioteca Pedro Calmon, uma pequena preciosidade que, embora pequena, para nós era um mundo encantado, onde nos encontrávamos com seus livros de histórias e ficávamos deslumbrados com as descobertas e novidades de um mundo que não conhecíamos de outra maneira. Era nosso passatempo nos sábados e domingos. Ir à biblioteca era o mesmo que ir a um templo, tão grande era a importância e o valor dado à leitura. O valor dessa visita à biblioteca era tão grande que nos trajávamos com nossas melhores roupas e sapatos, para irmos passar as tardes no Sobrado, absortos em boas leituras. Sob a orientação da Professora Dulcina, saíamos de lá com a alma e o espírito alimentados do que há de melhor para a vida de uma adolescente.
Dulcina também nos despertou o sentimento de amor pela pátria, pela cultura brasileira e do mundo. Lembro-me das comemorações das datas cívicas, especialmente o dia 7 de setembro com tanta festa o dia todo. Eram jogos, coreografias preparadas pelo mui querido Leocádio Liberalino da Silva, militar, grande amigo da escola. O jogo do verde e amarelo, paixão do rodelense, era a principal atração do dia 7. Festas, piqueniques no cajueiro, novenas com atividades festivas, recitais... A apresentação de um drama, nosso jeito de fazer teatro, tão bem encenado que a gente pensava que era real. Eram os alunos de Dulcina, além de outras pessoas da cidade como talento para o teatro. Dulcina também nos ensinou a valorizar as mínimas coisas e também àquelas de maior importância como a fé, a música, a literatura, a nossa própria história, a natureza.
Tornei-me mestra e tive o grande prazer de trabalhar com Dulcina. Vivi muitos bons momentos trabalhando com ela e aprendi a intensidade de viver a vida de educadora e como dar significado a tudo. Ensinou-me que a vida de mestra é um chamado diário à responsabilidade, no exercício do nosso mister.
É emocionante escrever sobre Dulcina, porque significa contar um pouco sobre cada um de nós e sobre os melhores tempos de nossas vidas. A infância, a adolescência, o velho sobrado, nossa escola e a figura da queridíssima Dulcina Cruz Lima estão na memória de cada um de nós, senão pela vivência, também pelas histórias que contamos aos, nossos filhos, nossos alunos, perpetuando a memória daquela que foi a grande educadora de Rodelas.






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Carmelita Cruz

Minha professora Dulcina

D. Dulcina, minha primeira professora, faz parte das melhores lembranças infância. Muitas vezes me pego contando aos meus filhos e netos as histórias que se passaram no sobrado da rua da frente.
Os alunos, bem como toda sociedade rodelense, tinham um grande respeito por ela. Da minha parte, além do respeito, tinha muita admiração, pois era uma mulher muito inteligente, bonita, elegante, corajosa, humana, zelosa.
É importante lembrar que naquela época o preconceito racial era explícito. D. Dulcina dava aulas, na mesma sala a brancos, negros e a nós, índios. Porém ela não admitia em sua aula qualquer tipo de brincadeira ou insulto que ressaltasse discriminação social.
Eu percebia que a minha professora tinha um especial carinho por mim, havia muita afinidade entre nós. Ela valorizava muito meu talento para o canto, para as artes, apostando no meu potencial. Consegui o meu primeiro emprego, como professora leiga, apenas com o que apreendi com ela da primeira à quarta primária.  O fato de ter sido sua aluna já foi meio caminho andado.
A amizade com D. Dulcina continuou durante a minha vida adulta. Ela foi uma pessoa admirável, marcante na minha vida.


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Maria e Lourdes Almeida Rodrigues

Falar de Dulcina

Falar em Dona Dulcina, é falar em dedicação, em renúncia e no amor pregado por Cristo e pelo apóstolo Paulo (sem restrições). Sua vida foi um verdadeiro sacerdócio. Trouxe beleza, juventude, educação esmerada e entregou-se, por inteiro, a um lugarejo onde metade era uma aldeia e a outra metade uma vila. Como Padre José de Anchieta, catequizou um povo. Ensinou a esse povo desde como sentar-se na Igreja sem fazer barulho com as cadeiras até como sentar-se à mesa.

À medida que o tempo passa, mais se entende como a presença e a sabedoria de Dona Dulcina foram importantes para Rodelas.Posso compará-la a uma estrela que desistiu de seu próprio brilho para acender a luz de pequenas estrelas. Quem freqüentou a Escola Felipe dos Santos, com certeza, não encontrou dificuldades em enfrentar o mundo gigante, lá fora. Ela transmitiu paz, esperança e solidariedade. Além do conteúdo programático,  ensinou como ser um verdadeiro homem, um verdadeiro cidadão.
A sua preocupação com a formação religiosa era demonstrada através de suas belíssimas crônicas dedicadas à Virgem Maria e transmitidas no final da tarde pela difusora local. Muitas peças sacras foram doadas por ela à Igreja da velha Rodelas, como prova de seu amor infinito por Jesus Sacramentado e pelo nosso querido padroeiro, São João Batista.
Tudo que se diga a respeito da Mestra das Mestras, que foi Dulcina Cruz Lima, ainda é pouco, diante do que ela representou para todos nós, diante de sua generosidade, de sua doação. Tenho certeza que em cada caminho que ela desbravou, em cada incompreensão que ela sofreu, os anjos foram semeando a semente do amor e que, na sua chegada à casa do Pai encontrou a entrada totalmente florida com as flores da justiça, do amor e do perdão.



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Cibele Lima

Tia Dulcina
Quando tia Dulcina partiu ainda éramos muito crianças, não conseguiremos traduzir a importância da mesma como ela merece. Mas não podíamos nos furtar a essa homenagem, tendo a mesma nos deixado um legado tão importante. As filhas de seu Carpim foram mulheres fortes. Esse é um modelo que nos espelhamos, que se perpetua até a nossa geração de bisnetas. Nossa memória é marcada por histórias de mulheres que sempre tiveram muita dedicação ao trabalho, muito amor à família e respeito aos valores éticos. Seu Carpim é lembrado pelo seu bom humor e sua magnificência. Tia Dulcina é um dos maiores ícones dessa tradição. Tradição essa que nos sustenta e orgulha.
A convivência com tia Dulcina, embora pouca, foi marcante. Nós, seus sobrinhos, a chamávamos de Madrinha, imitávamos minha mãe (Célia Lima). Embora ela tenha partido tão precocemente sua imagem ficou para sempre na nossa memória. Não apenas porque ela nos dava aqueles bombons maravilhosos. Ou ainda porque era interessante observá-la tingindo suas madeixas. A imagem de uma criatura muito vaidosa e elegante. Uma marca sua, era a eterna reclamação da poeira, devida a asma que a perturbava tanto. Outro momento interessante quando ela nos oferecia um pedaço de requeijão. Nunca haveremos de esquecer sua voz mansa a declarar que aquilo era uma “relíquia”, que devia ser degustada calmamente, ser valorizada. “Relíquia”?... Palavra difícil para se falar com crianças bem pequenas, mas naquele momento, sabemos hoje, era a educadora que falava. Essas são as lembranças cotidianas que a memória guardou com carinho, como flashes de um filme antigo.
Uma lição marcante que tia Dulcina nos deixou pode ser resumida na palavra generosidade. Antes de ir, ela nos chamou no hospital para nos dar conselhos. Um gesto que parecia estranho, mas que pode ser traduzido como a maneira de dizer “eu amo vocês”. Todo mundo comentava sua altivez ao preparar seu próprio testamento, pressentindo sua ida. Cada coisa tinha um destinatário. Foi sua forma deixar sua lembrança, sua generosidade, seu carinho. 
Lembrar de tia Dulcina é lembrar de Rodelas, com o imponente sobrado. Ainda mais imponente para crianças pequenas. Rodelas antes da barragem, com suas ruas tortuosas e o rio a banhar o quintal das casas. E, como não poderia deixar de ser, a festa de São João que é a lembrança mais gostosa. Parece que estamos vendo a fogueira em frente ao sobrado, os fogos, a rua cheia de gente, as comidas de Eliza. Aquela radiola no canto da sala. Zélia a cantarolar.
Depois de algum tempo é que fomos compreendendo a importância de tia Dulcina para Rodelas. A educadora. A mulher forte que tomava iniciativas. A dedicação ao trabalho. Contam nossos pais que ela abdicou da sua vida pessoal para estar a serviço da educação do povo de Rodelas. Para nós fica sempre o exemplo de alguém que esteve á frente do seu tempo. Nos anos 30 iniciou sua trajetória profissional. As pessoas se lembram das apresentações de drama, das poesias. Até jogo de futebol Dona Dulcina inventou. E as músicas para homenagear Rodelas, aumentando assim a auto-estima do povo. O sentimento de pertencimento a uma terra com valores. Um lugar que aprendeu a valorizar a educação.
O sobrado era a sala de aula, era também o palco para as festas. O grande salão da diversão. Ia assim brotando uma cultura interessante onde o lugar da educação era o lugar da festa. Criando no imaginário uma correlação, que associava estudos e prazer. E depois a gente só ouvia falar dos filhos de Rodelas que saíam de lá e se destacavam, apenas com o antigo primário. Alguns se destacaram como prefeitos da cidade. Aquela experiência intelectual marcava suas vidas porque não era apenas uma escola de conteúdos formais, era a escola da vida. Então, o falatório era que os ex-alunos de Dona Dulcina eram pessoas de sucesso. Para uma educadora não podia haver melhor recompensa. Para mim, sua sobrinha (e afilhada) é motivo de muito orgulho. Mas um orgulho de um conteúdo singular, que nos coloca o desafio de seguir os seus passos. Temos a convicção que esse exemplo permanece em nós e permeia nossas escolhas e posturas diante da vida. E está presente em figuras exemplares como minha mãe (Célia), tia Nélia (filhas de Dr. Lima) e tia Eliane (filha de Milvernes) e tantas outras. Pela sua beleza, pelo que representa, desejamos que este exemplo seja perpetuado nas gerações que nos seguem, extrapolando nossa família.


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Euclides Soares Novaes

Breve histórico do Colégio Estadual
 Dulcina Cruz Lima
Quando o poeta João Justiniano da Fonseca – nosso amigo e conterrâneo – propôs  construir neste colégio o Memorial da Professora Dulcina Cruz Lima, a proposta foi aplaudida por todos os membros da comunidade escolar, visto que esse registro e homenagem perpetuará na história rodelense o papel e o legado da  nossa patrona e, conseqüentemente, a caminhada desta instituição pelas trilhas da educação.
Foi aplaudida, também, a doação de mais 1700 livros à nossa biblioteca. Por iniciativa da comunidade escolar, e como justa homenagem e reconhecimento do valor dessa iniciativa, agora ela será denominada Biblioteca João Justiniano da Fonseca. Quero expressar, em nome dos professores, alunos, funcionário e pais de alunos, os nossos agradecimentos especiais e a nossa gratidão a esse ilustre conterrâneo que sempre buscou o progresso e o desenvolvimento para sua – e nossa - terra, através da cultura e da educação.
Decisão tomada, proposta aprovada, como atual Diretor do Colégio, fui encarregado de narrar a memória deste colégio, com o compromisso de registrar fatos e nomes  que ajudaram a edificar o colégio ao longo de seus anos de existência.
O Colégio Dulcina Cruz Lima, instituição que veio fortalecer a penetração de ideário público na educação de Rodelas, funciona desde 1966 - Governo Municipal do Prefeito Manoel Moura – que, através da portaria 2.347, D. O. E. de 11 e 12/04/1981, cria o Grupo Escolar Dulcina Cruz Lima, localizado na Avenida Vereador Miguel Soares, 164. na antiga sede municipal. Ainda lá, na Velha Rodelas, como carinhosamente chamamos, na gestão do Prefeito Francisco de Sales Maniçoba de Moura, em 10/04/1987, a Secretaria da educação estadual publica a Portaria 129, convertendo-o em colégio, autorizando-o a ofertar o ensino fundamental de 1.ª a 4.ª série e o curso Magistério, embora este, ao longo dos anos não tenha sido reconhecido pela SEC, em virtude de, no município já existir uma unidade que também ofertava esse curso.
Desde a sua criação até os dias atuais, a organização administrativa do Colégio Dulcina registra, como diretores, os seguintes nomes:
1966 a 1975: Joana Lima Rezende  - nomeada Diretora, símbolo C 9, oficialmente,  portaria 6017,  D/.O.E de 30/10/1969;
1975 a 1989: Maria Socorro Soares de Almeida – nomeada Diretora, portaria 5951, D.O.E. de 22/10/1975. De 1987 a 1989, continuou como Diretora do 1º grau;
1987 a 1991: Maria Goretti Soares de Moura - nomeada Diretora Geral, símbolo 4 C,  portaria 16578, D.O.E. de  18/11/1987;
1991 a 1996:  Durcelina Soares dos Santos e Silva – nomeada Diretora,  portaria 11407, D.O.E. de 13 e 14/07/1991;
e de 1997 até os dias de hoje:  Euclides Soares de Novais – nomeado Diretor, portaria 4171, de 17/07/1997
Em 1966,  iniciava o primeiro curso primário na escola, formado por três turmas dirigidas pela Diretora Joana Lima Rezende e ministradas pelas Professoras Gildete Soares, Maria Lima de Moura e Maria Socorro Soares de Almeida. As turmas  dividiam-se em séries, cada uma sob a responsabilidade de uma professora, que ministrava todas as disciplinas correspondentes àquela série.
A administração da Escola, na fase sob a responsabilidade da Professora Joana Lima Rezende, pode ser caracterizada como uma etapa inicial de construção marcada pela busca de um modelo em que se buscava estabelecer as bases e os fundamentos da vida do colégio. O espírito democrático fez crescer a instituição, caracterizada pela presença de uma população diversificada entre as culturas indígena, negra e branca, numa época em que Rodelas ainda alimentava, de maneira velada, o preconceito racial.
Com duas salas de aulas e  um pátio recreativo coberto que era também usado como sala de aula, às  8 horas, com o primeiro toque da campa, iniciava-se o primeiro turno escolar, finalizando as atividades do segundo turno às 17:30 horas. A ordem e a disciplina eram, sobretudo,  atribuições da Diretora. Entretanto, ela era assessorada pelos professores de cada turma.   As atividades culturais e sociais integram-se à vida do Colégio em todas as épocas. Nas décadas de 60 e 70, geralmente, elas desenvolviam programações que versavam sobre temas de cunho patrióticos – Independência do Brasil, Abolição da Escravatura, Proclamação da República, aniversário da cidade, etc. Comemoravam-se, com festividades diversas, as datas cívicas, principalmente o 7 de setembro, mas dava-se realce a outros momentos como o dia do Índio, das Mães, dos Pais, do Estudante, do Professor, da Páscoa e do Natal.
Considerando e respeitando os contextos socioculturais e políticos da época, verifica-se que hoje estamos conduzindo a formação das crianças e dos jovens a partir de princípios  que, na sua essência, vão ao encontro daquela adotada desde a  fundação da instituição.
Buscando assegurar valores educacionais como honestidade, amizade, justiça, solidariedade, respeito e tolerância ao outro, ao meio ambiente e a outras idéias de convivência e formação de cidadania e valorização da arte, o Colégio Dulcina atende hoje a alunos de 5ª a 8ª série do ensino fundamental.
A nossa clientela, proveniente da sede do município e das agrovilas do projeto Itacoatiara, é formada basicamente por filhos de agricultores, pescadores, pequenos pecuaristas, comerciantes e alguns filhos de funcionários públicos.
O corpo docente é formado por  doze professores. Desses, oito são pós-graduados, um tem licenciatura e três possuem formação no Magistério do 1º grau. Cinco funcionários compõem o corpo administrativo e  nove servidores  realizam os serviço de manutenção, alimentação, higienização e segurança da escola.
O prédio possui sete salas de aulas, sendo que quatro são utilizadas com tal finalidade, uma como sala de professores, onde também funciona a secretaria, uma como biblioteca e outra em que funciona a sala de vídeo. Possui ainda uma sala de Direção, uma cozinha, uma quadra de esporte, e conjuntos sanitários – um masculino e outro feminino - compondo ao todo seis sanitários, e um depósito.
Vale ressaltar que a construção do depósito, da sala dos professores, o aterro e o calçamento do palco e do entorno da quadra é resultado de um trabalho voluntário de pais de alunos e de amigos da escola. Esforço que também resultou na aquisição de vários materiais, tais como a mesa de som da rádio, uma impressora a laser, ventiladores, refletores da quadra. Afinal, o desafio de aperfeiçoar a educação pertence também à sociedade e esperar pela morosidade e falta de compromisso do poder público não faz parte da nossa caminhada.
Percebe-se assim que, dentre os objetivos do Colégio Dulcina, inclui-se a busca constante de um relacionamento pleno entre escola e a comunidade. Além da atuação do Colegiado Escolar, dos voluntários amigos da escola, o Colégio coloca seu espaço à disposição da comunidade, permitindo a utilização de suas instalações para uso comunidade rodelense, já tendo aberto às suas portas ao sindicato, ao grupo de capoeristas, a religiosos e outros.
Como atividades comemorativas que marcam o calendário anual da instituição destacamos o aniversário do Colégio, a Noite de Maio - tradicional comemoração mariana no município -, o Dia das Mães, o São João, o Dia dos Pais e a Semana da Pátria. Além dessas comemorações, de 1997 a 2007 desenvolvemos projetos de significado cultural e de esclarecimentos aos alunos. Assim, em momento diversos, a quadra e o pátio do Colégio têm sido palco de debates, reuniões e apresentações, destacando-se os seguintes eventos:
Feira de Ciências;
Festival de Estilo Musical;
Gincana Cultural;
Projeto Valores Humanos;
Abraço Simbólico do Rio são Francisco;
Leitura é Vida;
Filmes e documentário sobre vários documentos
Esses eventos, elaborados por grupos de professores  de determinadas áreas de ensino, resultam da mobilização da comunidade escolar que busca recursos para o desenvolvimento de atividades culturais, que têm como foco a prática da interdisciplinaridade como meio de trabalhar a interdependência que permeia o mundo da cientificidade, afinal o próprio dinamismo da vida provoca alterações e mudanças de concepções e de elementos norteadores para a educação e a vida. Assim, cada momento apresenta-se com características próprias e específicas, razão porque o Colégio Dulcina, hoje, não é o Dulcina de quarenta anos atrás, mantendo, porém, o incremento e a valorização de atividades compatíveis com os seus princípios.
Por fim, quero lembrar que, no ramo da História, obra alguma estará pronta e acabada. Todavia, se este registro puder contribuir para um melhor conhecimento do Colégio Dulcina e se isso resultar em maior aproximação com a comunidade, ter-se-á atingido o principal objetivo desse texto.